Governo nega, mas analistas não descartam mudança da meta fiscal

Consenso entre especialistas ouvidos pelo Correio é de que o governo precisará arrumar mais receitas ou cortar gastos — algo considerado pouco provável em pleno ano eleitoral

A recente decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), que orienta o governo federal a parar de perseguir o piso da meta fiscal, tem chances de ser a desculpa que o Executivo queria para mudar a meta fiscal novamente, como ocorreu poucos meses depois de a regra do arcabouço fiscal ter sido aprovada, em 2024, de acordo com especialistas. Eles lembram que o governo só consegue cumprir as metas de forma contábil, com descontos de despesas — o que tem deixado a regra do arcabouço frouxa, pois os principais gastos obrigatórios do Orçamento seguem crescendo acima do limite de 2,5% acima da inflação previstos. Logo, a conta não fecha.

Diante desse quadro inevitável que ruma para um colapso em 2027 que já está previsto pelo próprio governo no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2026, enviado em abril ao Congresso, o consenso entre analistas ouvidos pelo Correio é de que o governo precisará arrumar mais receitas ou cortar gastos — algo considerado pouco provável em pleno ano eleitoral —, e, portanto, mudar a meta fiscal será o caminho mais curto, enterrando, assim, de vez a credibilidade do arcabouço fiscal.

No primeiro ano em que o novo regime fiscal entrou em vigor, as contas públicas apresentaram um rombo fiscal de R$ 42,9 bilhões, que, após o ajuste metodológico, passou para R$ 45,4 bilhões — aquém do piso da meta, de saldo negativo de até R$ 27,7 bilhões. E, em virtude dos descontos do pagamento de precatórios — dívidas judiciais — e de gastos emergenciais para o socorro às vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, o deficit primário ficou em R$ 13,5 bilhões, finalmente dentro do limite inferior da meta fiscal que de deficit zero com banda de tolerância de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) para cima ou para baixo.

Em evento recente do Itaú BBA, em São Paulo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, negou a possibilidade de mudança da meta fiscal e reafirmou que “o governo pretende cumprir a meta fiscal”. Além disso, ainda minimizou a decisão do TCU, mas não convenceu a plateia e especialistas em contas públicas.

Rombo

Neste ano, a meta do arcabouço também é de deficit primário zero, com piso de R$ 31 bilhões e, conforme as estimativas da reprogramação orçamentária, o rombo fiscal deverá ser de R$ 30,2 bilhões, já considerando os descontos de parte dos gastos com precatórios, de R$ 43,3 bilhões, menos do que o inicialmente previsto. Mas o rombo fiscal efetivo para o ano está em R$ 73,5 bilhões — acima da mediana das previsões do mercado, de R$ 69,9 bilhões, coletadas no Prisma Fiscal do Ministério da Fazenda. E, no ano que vem, o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) enviado ao Congresso prevê um rombo efetivo de R$ 23,3 bilhões e o cumprimento da meta só é possível após o desconto de R$ 57,8 bilhões de gastos com precatórios.

Apesar de o governo sinalizar que deve acionar a Advocacia-Geral da União (AGU) para recorrer da decisão do TCU, analistas elogiam a decisão e a consideram tardia. “A decisão do TCU é correta, ainda que venha muito tardiamente e após muitos alertas por parte de agentes de mercado. Há risco de que a correta decisão do Tribunal, que ainda cabe recurso pela Fazenda, seja usada como carona para alterar a meta fiscal no próximo ano (eleitoral)”, avalia Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da ARX Investimentos.

Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, também não descarta mudança na meta, principalmente na de 2026, em pleno ano eleitoral, quando o governo tende a aumentar as despesas para se manter no poder. Ele, inclusive, lembra que a decisão do TCU é mais uma sugestão e não tem força de lei. “Há uma grande chance (de mudança da meta), porque o deficit primário deverá ficar em torno de R$ 100 bilhões. Mas o Congresso pode atrapalhar exigindo isso por lei.”

Para este ano, Vale prevê um rombo fiscal de R$ 75 bilhões. Ele ainda reconhece que é difícil ser otimista com o quadro fiscal atual, que tende a piorar no próximo ano, e, portanto, o próximo governo terá de fazer um ajuste fiscal estrutural seja qual for o vencedor nas urnas.

A economista Karina Bugarin, especialista em contas públicas e pesquisadora do LabPub & Nereus Universidade de São Paulo (USP), também não tem dúvidas de que o governo acabará mudando a meta fiscal, porque não deverá fazer um novo corte de gastos para cumprir a determinação do TCU.

“O que está acontecendo agora é que o jogo ficou mais duro: cenário internacional e pressões pré-eleitorais pressionam uma expansão de gastos enquanto o TCU reforça a cobrança da meta. E o Congresso tende a usar a meta como ponto de barganha, como já aconteceu em governos anteriores, como os dos ex-presidentes Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).”

O especialista em contas públicas Alexandre Andrade, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), também considera a decisão do TCU correta. “Ela se ampara na Emenda Constitucional 109, de 2021, que estipula que o Poder Executivo deve garantir a sustentabilidade da dívida pública por meio de resultados fiscais condizentes com essa trajetória. Ocorre que o argumento do governo é válido também e se baseia na Emenda Constitucional 100, de 2019, que tornou o Orçamento impositivo”, explica.

Ele lembra que, como a Lei Complementar 200, de 2023 (do arcabouço fiscal) garante o cumprimento formal da meta de primário pelo piso da banda de tolerância, “existe aí um conflito de interpretações no regramento jurídico”. “Claramente, o Executivo tem perseguido o piso da meta fiscal. E o piso tem se mostrado insuficiente para conter o aumento do endividamento em proporção do PIB”, acrescenta.

Dívida explosiva

O arcabouço fiscal tem duas regras — a da meta fiscal, com suas bandas para cima e para baixo de 0,25% do PIB, e a que limita o crescimento das despesas em até 2,5% acima da inflação. O regramento foi aprovado em 2024 para substituir o teto de gastos, implementado em 2017, após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Mas, quando era para começar a ser aplicado os gatilhos com o descumprimento — que obrigava cortes de gastos —, a regra do teto ganhou vários “puxadinhos” para evitar o acionamento dos gatilhos, sendo que o mais grave foram as pedaladas no pagamento de precatórios em 2022, que precisaram ser revertidas no atual governo, contribuindo para a piora na trajetória da dívida pública.

Em dezembro de 2022, a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) — que compreende governo federal, INSS e governos estaduais e municipais — atingiu 73,5% do PIB (R$7,2 trilhões) em 2022, conforme dados do Banco Central. Em agosto deste ano, a DBGG avançou para 77,5% do PIB, somando R$ 9,6 trilhões — aumento de R$ 2,4 trilhões desde o início do atual governo.

A metodologia do BC é diferente da utilizada pelo Fundo Monetário Nacional (FMI), que inclui os títulos do Tesouro Nacional que estão na carteira da instituição, e que elevam a DBGG para 91% do PIB e totalizando R$ 11,3 trilhões em agosto — o que é muito mais preocupante para um país emergente com a taxa básica da economia (Selic) em 15% ao ano e a segunda maior taxa de juro real (descontada a inflação) do planeta, atrás apenas da Turquia. “Esse endividamento elevado do governo explica a manutenção de taxas de juros elevadas de curto prazo, porque com dívida crescente aumenta o risco de incapacidade de pagamento por parte do governo”, aponta o economista Simão Davi Silber, professor da USP.

Problemas

De acordo com analistas, a explosão da dívida pública não é resultado apenas dos juros elevados. A economista e especialista em contas públicas Selene Peres Nunes, uma das autoras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), destaca vários problemas na regra do arcabouço fiscal e a principal delas é a meta com banda flexível que, com os descontos de despesas, não ajuda a reduzir o endividamento público. “A meta fiscal não se sustenta e a dívida pública está explodindo e, portanto, não é capaz de atender os requisitos para estabilizar o aumento da dívida pública”, alerta.

Na avaliação de Selene, a decisão do TCU “foi correta”, porque ela acaba criando espaço para incluir despesas que não não cabem no Orçamento em vez de ser utilizada nos casos emergenciais. “Essa história de banda é ruim, porque bastaria ter o centro da meta. O risco fiscal, que é um evento incerto, está previsto na LRF para a reserva de contingência e isso inclui precatórios e demandas judiciais e imprevistos. O que é preciso é uma atuação mais sistêmica do governo na questão de precatórios e também controlar melhor as despesas obrigatórias, além das reformas estruturais”, destaca.

“A decisão do TCU foi oportuna e ele deveria ter decidido antes, porque a banda da meta está sendo utilizada como uma flexibilidade excessiva que não garante a sustentabilidade da dívida, especialmente, porque há uma sequência de decisões do Executivo e do Congresso que não contribuem para a estabilização da dívida”, acrescenta.

Segundo a especialista em contas públicas, o governo precisa cortar as renúncias fiscais que foram incluídas na Emenda Constitucional 109, em 2021, sem que houvesse uma avaliação criteriosa da eficácia dos gastos tributários e que mais pesam na conta de subsídios.

Conforme dados do Ministério do Planejamento e Orçamento, em 2024, os benefícios tributários somaram R$ 536 bilhões e apenas seis deles, como Simples Nacional, Zona Franca de Manaus e igrejas e entidades sem fins lucrativos respondem por 52,7% desse montante e não podem ser revistos. “Há um monte de política que precisa ser avaliada, e é preciso rever essa emenda”, defende.

Gargalos orçamentários

Outro problema no Orçamento, além dos subsídios sem impacto na economia que precisarão ser revistos o quanto antes, é o fato de que várias despesas obrigatórias crescem acima do limite de 2,5% acima da inflação previsto no arcabouço fiscal e estão estrangulando os gastos discricionários — que podem ser cortados e que correm o risco de atingir o nível crítico que compromete o funcionamento da máquina pública.

Entre os exemplos estão os gastos com pessoal e encargos e com benefícios previdenciários — que possuem maior peso entre as despesas obrigatórias e estão sendo impulsionados por reajustes salariais e do mínimo acima da inflação, além do aumento de contratações do funcionalismo federal, com a retomada dos concursos, como “Enem dos Concursos”, que teve a primeira prova da segunda edição realizada ontem. Pelas projeções da ministra da Gestão, Esther Dweck, até o fim do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, serão contratados mais de 20 mil a 21 mil servidores.

Não à toa, conforme dados do Tesouro, no acumulado de janeiro a agosto deste ano, essas duas despesas, descontada a inflação, cresceram 4,2% e 4,6%, respectivamente. E, no Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) do próximo ano, o quadro não deixa de ser igualmente preocupante.

Do montante de R$ 2,9 trilhões previstos para as despesas obrigatórias, 36,5% são referentes aos benefícios previdenciários e outros 15,6% com pessoal e encargos, totalizando 52% desta rubrica avançando a taxas de crescimento de dois dígitos em relação ao Ploa deste ano, de porque apresentam aumento nominal de 11,5% e 9,3%, respectivamente. Descontada a inflação projetada de 4,85% na peça orçamentária, o crescimento real do gasto com benefícios previdenciários seria de 4,45%, e, com pessoal, de 6,65%.

Diante desse quadro, Simão Silber, professor da Universidade de São Paulo (SP), acredita que não há a menor possibilidade de o governo cumprir as metas do arcabouço fiscal com as despesas obrigatórias crescendo em ritmo acima do limite previsto. “Esse tipo de despesa tem, vamos dizer assim, vida própria, porque tem regras de reajuste automáticas e imutáveis, aprovadas em lei pelo Congresso. Portanto, existem várias simulações. Como a receita não vai acompanhar, nós vamos ter nos próximos anos, sistematicamente, duas coisas: a manutenção do resultado primário negativo e um crescimento exponencial da dívida do governo, que é algo semelhante ao que está acontecendo no mundo, pois há um trabalho recente do FMI (Fundo Monetário Internacional) indicando que o endividamento dos vários governos e do setor privado, que está crescendo de forma sistemática.”

O economista e consultor Murilo Viana, da GO Associados, reforça que o próximo governo será obrigado a fazer um forte aperto fiscal para evitar um shutdown da máquina pública, pois há gastos obrigatórios também entre as discricionárias. 

Fonte: Correio Braziliense

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