É considerado ilegal o indeferimento do pedido de isenção do IPI na compra de veículo por pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA) sob o argumento de que o requerente já é beneficiário do Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Essa foi a decisão unânime da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao negar provimento ao recurso especial interposto pela Fazenda Nacional.
O caso envolvia a interpretação de normas distintas: a isenção do IPI para pessoas com deficiência, inclusive autistas, prevista no artigo 1º, inciso IV, da Lei 8.989/1995; e a disciplina do BPC, regulamentado no artigo 20 da Lei 8.742/1993 (LOAS), cujo §4º proíbe sua cumulação com qualquer outro benefício no âmbito da seguridade social ou de outro regime.
Com base nessa regra, a Receita Federal sustentava que o recebimento do BPC impediria a concessão da isenção tributária. Diante do indeferimento administrativo, o interessado ajuizou mandado de segurança para garantir o direito.
As instâncias ordinárias reconheceram a ilegalidade do ato, entendimento posteriormente confirmado pelo STJ.
No voto condutor, o ministro Marco Aurélio Bellizze esclareceu que a expressão “outro regime”, constante do §4º do artigo 20 da LOAS, refere-se a regimes previdenciários — Regime Geral da Previdência Social, Regimes Próprios de Previdência Social e Regime de Previdência Complementar — e não ao regime tributário.
Segundo o relator, o BPC visa assegurar o mínimo existencial, o que se tornaria desnecessário se o beneficiário já contasse com outra prestação previdenciária ou assistencial. Já os benefícios tributários, como a isenção do IPI, não possuem essa finalidade, não podendo ser considerados “cumulativos” com o BPC.
Para o ministro, a interpretação defendida pela Fazenda Nacional, além de incompatível com a finalidade do benefício, violaria os princípios constitucionais da isonomia e da capacidade contributiva.
Veja o acórdão:
DIREITO TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. INDEFERIMENTO DE PEDIDO DE INSEÇÃO DE IPI, EFETUADO POR PESSOA COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA, EM RAZÃO DE ALEGADA INCOMPATIBILIDADE DA PRETENSÃO COM O FATO DE O REQUERENTE SER BENEFICIÁRIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA (BPC), QUE TEM COMO PRESSUPOSTO A AUSÊNCIA DE CONDIÇÃO FINANCEIRA PARA SUBSISTÊNCIA. CONDIÇÃO NEGATIVA NÃO PREVISTA EM LEI. CONCESSÃO DA ORDEM NA ORIGEM. MANUTENÇÃO. RECURSO DESPROVIDO.
- Caso em exame
- Recurso especial interposto pela Fazenda Nacional contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que manteve a concessão da segurança para assegurar a isenção de IPI na aquisição de veículo automotor por pessoa com Transtorno do Espectro Autista, independentemente do recebimento do Benefício de Prestação Continuada (BPC).
- Razões recursais expendidas pela Fazenda Nacional destinadas a corroborar a decisão administrativa de indeferimento do pedido de isenção de IPI, sob o argumento de que o requerente recebe o BPC, o qual não pode ser cumulado com outros benefícios no âmbito da seguridade social, conforme o art. 20, § 4º, da Lei n. 8.742/1993. II. Questão em discussão
- A controvérsia posta no presente recurso especial centra-se em saber se a concessão de isenção de IPI na aquisição de automóveis para utilização no transporte autônomo de passageiros por pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA) é condicionada, ou não, à circunstância de que esta não receba, concomitante à pretendida isenção, o Benefício de Prestação Continuada – BPC, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS.
III. Razões de decidir
- Na hipótese dos autos, a despeito do preenchimento dos requisitos legais à concessão da isenção de IPI na aquisição de veículo automotor, por pessoa com Transtorno do Espectro Autista (apresentação de laudo, com especificação do diagnóstico médico e comprovação de disponibilidade financeira ou patrimonial compatível com o valor do veículo a ser adquirido ), a administração fazendária erigiu, como condição negativa à obtenção do benefício fiscal, a circunstância – não estabelecida na lei isentiva de regência – de que o requerente não fizesse jus, simultaneamente, à percepção do Benefício de Prestação Continuada – BPC, invocando, para tanto, o disposto no art. 20, § 4º da Lei n. 8.742/1993, cujos contornos, todavia, não conferem respaldo algum a essa conclusão.
- De seus termos (do § 4º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993) ressai evidenciado que o Benefício de Prestação Continuada não pode ser cumulado com nenhum outro benefício no âmbito da seguridade social (como o são o seguro-desemprego, a aposentadoria, pensão por morte, v.g.) ou de outro regime – aqui, leia-se, regime previdenciário –, ressalvadas assistência médica, pensão especial de natureza indenizatória (como a regulada na Lei n. 7.070/1982); e transferências de renda oriunda da chamada “renda básica de cidadania”, mencionada no art. 6º, parágrafo único, da Constituição Federal e no art. 1º, § 1º, da Lei n. 10.835/2004 (no que se insere o “bolsa família”, benefício concebido como etapa do processo gradual e progressivo da universalização da renda básica de cidadania – art. 1º, § 1º, da Lei n. 14.601/2023). 5.1 Justifica-se a impossibilidade de acumulação, a considerar que o BPC tem por finalidade precípua justamente prover o mínimo existencial do beneficiário (pessoa idosa ou portadora de deficiência ou com Transtorno do Espectro Autista), o que já seria alcançado pela concessão de outros benefícios previdenciários e assistenciais, circunstância, por evidente, que não se aplica, nem sequer reflexamente, aos benefícios fiscais. Por tal razão, não se poderia conferir à norma de caráter indiscutivelmente restritiva (por restringir o direito à percepção do BPC) interpretação ampliativa para fazer incluir na vedação ali prevista os benefícios de ordem fiscal, que não guardam, como visto, nenhum paralelo com a justificação contida na norma proibitiva.
- A interpretação conferida pela autoridade coatora, ao reputar vedado ao beneficiário do BPC – pessoa com deficiência e idoso com 65 anos ou mais, sem condições de prover sua própria subsistência – fazer jus à obtenção de um benefício fiscal, vulnera substancialmente os princípios da capacidade econômica do contribuinte, bem como da isonomia (que viabiliza, em certos casos, discriminações legais que se afiguram justas e razoáveis a fim de alcançar a igualdade material entre os contribuintes), o que não se concebe.
- O benefício fiscal em questão dirige-se, no que importa ao caso em análise, às pessoas com Transtorno do Espectro Autista em relação às quais não se exige a comprovação de hipossuficiência financeira. De modo diverso, a lei isentiva do IPI exige destas a demonstração a respeito da disponibilidade financeira ou patrimonial compatível com o valor do veículo a ser adquirido.
7.1 Este requisito – hipossuficiência financeira –, nos exatos termos em que especificado na Lei de Organização de Assistência Social, relaciona-se à concessão do Benefício Prestação Continuada, apresentando-se à administração fazendária como questão absolutamente irrelevante para fins de concessão ou não do benefício fiscal em exame, mostrando-se, por isso, indevida qualquer consideração a esse respeito.
- O reconhecimento de suposta ou eventual capacidade financeira do núcleo familiar do impetrante poderia, em tese, ser fundamento para revogação do benefício assistencial – garantido ao beneficiário, em todo caso, o exercício do contraditório e da ampla defesa –, e não o indeferimento de isenção de IPI sobre o veículo.
- Dispositivo e tese
- Recurso desprovido.
Tese de julgamento: 1. É ilegal o indeferimento do pedido de isenção de IPI na aquisição de veículo automotor por pessoa com Transtorno do Espectro Autista, sob o fundamento precípuo de que o requerente é beneficiário de Prestação Continuada. 2. A proibição veiculada no § 4º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993 consiste na impossibilidade de acumulação do Benefício de Prestação Continuada com outros benefícios previdenciários e assistenciais, ressalvados os casos ali mencionados, não se referindo, nem sequer reflexamente, aos benefícios fiscais.
Dispositivos relevantes citados:
Lei n. 8.989/1995, art. 1º, IV; Lei n. 10.690/2003, art. 5º; Lei n. 8.742/1993, art. 20, § 4º. Jurisprudência relevante citada: Não há jurisprudência relevante citada.
(STJ – 2ª TURMA – RECURSO ESPECIAL Nº 1993981 – PE (2022/0087825-3) RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE – Julg. 12 de agosto de 2025).
Fonte: Correio Forense